quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A expressão “Pura e Santa Virgem Maria” empregada nos Artigos de Esmalcalde. PARTE II.



Santa Maria com Cristo Jesus recém nascido. Imagem: Cleofas.

1 – O parecer de 26 de outubro de 1988 sobre “A Expressão „Pura e Santa Virgem Maria Empregada nos Artigos de Esmalcalde” enfatiza que todas “as referências a Maria nas Confissões Luteranas visam à glorificação de Cristo e não de Maria”. Os autores da consulta, no entanto, queriam “a nossa decisão, a nossa posição firme e transparente acerca da questão” e, caso isto não seja possível, levantam a hipótese de “suprimir simplesmente esses dois polêmicos adjetivos („pura e „santa)”, o que, concordam, é impossível. O assunto certamente merece um parecer adicional.

2 – A expressão “pura e santa virgem Maria” (AS I,4) deve ser entendida de acordo com o “usus loquendi” das Confissões. “Pura e Santa” são adjetivos que precisam ser entendidos de acordo com o contexto. Em nenhum momento as Confissões aceitam a possibilidade de haver uma pessoa que tivesse pureza e santidade inatas, com exceção de Jesus Cristo. Todas as outras formas de pureza e santidade são adquiridas pelo pecador através da fé em Jesus Cristo. Desta forma Maria é “pura e santa” por causa da sua fé na redenção por Jesus Cristo, como todos os cristãos.

3 – Mas Maria tem um honra especial: uma parte do seu corpo que foi usado por Deus Espírito Santo para formar o corpo do Santo Filho de Deus participou da pureza e santidade inatas de Jesus Cristo. Já não era dela esta parte, mas do seu Santo Filho.

4 – Os textos de Lutero citados na nota de pé-de-página 36 da página 311 do Livro de Concórdia, edição de 1980, mostram que esta era a posição clara de Lutero.

a) Na 1ª citação da WA 53,640 (Vom Schem Hamphoras und vom Geschlecht Christi, 1543) Lutero diz: “(...) von der Erbsunde erlöset und gereiniget, (...)”. Com isso diz que Maria só foi “pura e santa” por redenção. Isto aconteceu pela fé em Jesus Cristo.

b) Na 2ª citação da WA 52,39 (Hauspostille, 1544. Sermão de 1532, dia do Natal) diz Lutero: “(...) das sie on alle sünd gewesen ist, da sie den Herrn Jesum empfangen und getragen hat.” A referência é bem específica: era sem pecado na concepção e na gestação, isto é, naquelas partes que transferiu para o próprio Senhor Jesus. Estas partes já não lhe pertenciam, eram do Filho de Deus, santo e sem pecado.

c) Na 3ª citação da WA 36 (Sermão de 1532, Domingo de Ramos) Lutero enfatiza este ponto: “(...) Fleisch und blut gehalten und warhafftig mensch draus gemacht, aber die sunde draus gefeget, ut sit jam mater eins reineskindes, qi non mit sunden begifft”. A carne e o sangue usados para gerar o Filho de Deus não tinham mais pecado, pois não eram mais de Maria. Eram de Jesus.

d) Na 4ª citação da WA 39,2,107 (Die disputation de divinitate et humanitate Christi, 1540) Lutero inclui Maria como pecadora, quando diz: “Omnis homo obnoxius est vitiis peccati originalis excepto Christo. (...) et in conceptione purgata tota illa caro et sanguis Mariae est, ut nihil peccati sit reliquum. (...) alioque omne sêmen excepta Maria fuit vitiatum.” Aqui Lutero enfatiza que somente a “semente” de Maria foi santa, pois aquela parte da carne e do sangue de Maria que formaram Jesus foi sem pecado. Já era carne e sangue de Jesus. Só Jesus foi sem pecado, embora nascesse de Maria que tinha também pecado, mas foi perdoada e santificada pela redenção em Cristo.

5 – As expressões “pura e santa” são condicionadas pela fé na misericórdia de Deus e não pelo fato de ser a “virgem Maria”. Ser “virgem” não se identifica com ser “puro e santo”. As Confissões são muito claras nesta posição. Não é correto afirmar com Ernst Kinder (Kie Erbsünde, p.48) que “fica aberta (indecidida) a questão do sentido de „pura
nas Confissões Luteranas, isto é, se significa sem relações sexuais ou livre de pecado original”.

6 – As Confissões entendem uma pureza interior e outra exterior. A pureza exterior das obras só existe com a pureza interior da fé (Ap IV, 283). Sem a pureza interior da fé não há pureza exterior. Assim “a virgindade é imunda nos ímpios” e “o matrimônio nos piedosos é puro” (Ap XXIII, 34). Mesmo “pode acontecer que o coração de um marido, como Abrão ou Jacó, que foram polígamos, seja mais puro e arde menos em desejos do que o de muitas virgens, ainda que deveras continentes” (Ap XXIII, 64). A “pureza de coração” consiste na “concupiscência mortificada” e no “arrependimento” que acompanha a fé (Ap XXIII, 35, 64). Deus certamente requer que “esteja puro o coração, se bem que, enquanto aqui vivermos, não podemos alcançá-lo (CM I,310). O homem é justo “não em razão de sua pureza, mas por misericórdia, por causa de Cristo” (AP IV, 86).

7 – Há, portanto, dois tipos de pureza: a inata, como a de Jesus, e a atribuída pela fé, como a de Maria e de todos os cristãos. A justiça interna, que vem da misericórdia de Deus, se revela em atos puros externos, nas boas obras. A pureza destas obras, como toda perfeição dos cristãos, depende do arrependimento e da fé (Ap IV, 353). Lutero sabe que a pureza essencial não é alcançada enquanto vivermos (CM I, 310). Mas há uma pureza relativa que é causada pela fé. Por isso pode haver “maior pureza de coração” num casal cristão do que em celibatários (Ap XXIII, 35, 66). A virgindade não protege contra a impureza (Ap XXIII, 64). Em vista da pureza causada pela fé o apóstolo Paulo pode afirmar que “todas as coisas são puras para os puros”, Tt 1.15 (Ap XXIII, 34, 41).

8 – Logo, a nota 36 em AS I, 4 não é recomendável, porque insinua uma indecisão entre “sem relações sexuais ou livres de pecado original”. Nenhuma das duas hipóteses pode ser aplicada rigorosamente a Maria. “Livre do pecado original” era só a parte do seu corpo que formou seu Filho Jesus Cristo. Já não era dela. “Sem relações sexuais” fala de sua virgindade, não de sua “pureza e santidade”. E não é provável que Maria tenha sido condenada à “eterna virgindade” por ter sido a mãe de Jesus. Ela poderia ter recebido como prêmio uma ativa vida sexual de casada em “pureza e santidade”, como os felizes casais cristãos de sempre. Os antidicomarianistas tinham muitas e boas razões.

Porto Alegre, 25 de novembro de 1991.

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