domingo, 20 de outubro de 2013

Marco Polo não descobriu a China.


Marco Polo sendo recebido na corte do neto de Gêngis Khan O rei da França decidiu nomear uma nova delegação, dessa vez confiada a Guilherme de Rubruck, para difundir os ensinamentos do Evangelho na Ásia e relatar tudo aquilo que pudesse observar. O religioso deixou Constantinopla em 1253 e levou 90 dias para percorrer os 3 mil km que o levariam a Karakorum, no norte do deserto de Gobi, onde residia o khan Mongke, quarto imperador mongol. Imagem: Biblioteca Nacional da França / Paris

Marco Polo sendo recebido na corte do neto de Gêngis Khan Apesar da fama acumulada por Marco Polo, ele não foi o primeiro europeu a ser recebido na corte do imperador mongol, que dominava a maior parte da Ásia no século XIII. O pioneiro foi um monge franciscano natural de Flandres, chamado Guilherme de Rubruck. O religioso foi também o primeiro a descrever detalhadamente sua viagem ao maior império do Oriente.

Essa história começou na primeira metade do século XIII, numa época em que os mongóis ainda faziam a Europa tremer. O filho de Gêngis Khan havia tomado Moscou em 1238, se apoderado das cidades de Kiev e Zagreb, na atual Ucrânia, invadido a Polônia e ameaçado até mesmo Viena. Essa série de vitórias só foi interrompida pela morte do soberano, já que as disputas por sua sucessão enfraqueceram a dinastia e forçaram os mongóis a recuar até a Ásia central.

Afastado o perigo, o Ocidente passou a enxergar as populações do Leste como aliados em potencial nas cruzadas contra o mundo islâmico, já que alguns asiáticos seguiam o credo nestoriano, variante do cristianismo surgida no século V e considerada herética pela Igreja de Roma. A primeira tentativa de aproximação ocorreu em 1244, quando o papa Inocêncio IV confiou ao monge franciscano Giovanni da Pian del Carpine e ao frei dominicano Ascelino de Cremona a missão de levar até o Grande Khan uma mensagem de desaprovação das destruições que ele provocara, convidando-o a aderir ao “bom caminho”, ou seja, ao cristianismo. O soberano oriental, irritado, respondeu dizendo estar pronto para reconhecer o papa, mas como seu vassalo.

Dois anos depois, quando Luís IX estava na ilha de Chipre liderando a Sétima Cruzada, um enviado mongol lhe propôs uma ação militar conjunta: enquanto os cristãos atacassem o sultão do Cairo, o império do Leste investiria contra o califado de Bagdá. Luís aprovou a ideia, mas o Grande Khan faleceu antes que a delegação francesa chegasse à sua corte para firmar o acordo, fazendo tudo voltar à estaca zero.

No dia 3 de janeiro de 1254, Guilherme de Rubruck finalmente chegou à corte do neto de Gêngis Khan, que pela primeira vez acompanhou a entrada de uma delegação ocidental na cidade. Depois da calorosa recepção, o franciscano participou de uma discussão entre muçulmanos, budistas e cristãos organizada pelo líder oriental, na qual percebeu que sua missão estava fadada ao fracasso: os mongóis não seriam convertidos.

O processo de Joana D’Arc

Mesmo presa, a Donzela foi uma ameaça para seus adversários. Eles arquitetaram um julgamento falacioso para transformar a “enviada de Deus” em discípula de Satã.


 "Joana d’Arc, uma das pessoas de índole mais simples que a história produziu, está em processo eternamente”, escreve o acadêmico Jean Guitton. O inquérito contra a Donzela – para empregarmos um termo jurídico – começou com a sua estada, que se prolongaria por várias semanas, em Poitiers, na França, em março de 1429, no curso das quais os doutos da Igreja e também os juristas do Estado vigiavam permanentemente seu comportamento, inquirindo-a com perguntas insidiosas tanto para tentar atingir sua enorme credibilidade quanto para delinear sua personalidade.

O primeiro veredicto a que chegaram é que não havia nada de inquietante, nem de suspeito a respeito daquela pastora pouco culta que, dizendo-se guiada por vozes, se apresentara diante do delfim afirmando que viera para conduzir os franceses à vitória. Sua boa-fé parecia verdadeira; seu projeto era santo. Talvez a Providência, enfim, tivesse decidido intervir a favor de Carlos VII da França, um rei considerado muito cristão, e de seus súditos. Certamente, o instrumento dessa intervenção poderia surpreender, mas era teologicamente admissível. Era fato – assim mostrava a Bíblia – que o céu se interessava pelo destino dos povos e das nações. Logo, não apoiar a iniciativa da “enviada de Deus” que desejava provar a origem sobrenatural de sua missão por meio de um “sinal” perante a cidade de Orléans, sitiada havia seis meses pelos ingleses, seria dar provas de ingratidão. Parecia absolutamente inevitável, pode-se dizer necessário, sobretudo num momento de angústia, confiar nela.

E o milagre acontece! As palavras da pequena Joana são confirmadas. O cerco de Orléans é desfeito (8 de maio de 1429) e, logo a seguir, três outras cidades do vale do Loire são reconquistadas. Quando os ingleses são derrotados em Patay (18 de junho), a reconquista do reino se acelera – e Carlos VII, conduzido pela Donzela de Orléans (a partir dessa data, ela será conhecida por esse nome), é sagrado rei, na catedral de Reims, no dia 17 de julho, em clima de entusiasmo geral. Mesmo depois de tudo isso, as interrogações continuam: que força se esconde por trás dessas vitórias espetaculares?

A propaganda da Coroa francesa reforçou a dimensão religiosa da personalidade de Joana. A Donzela foi apresentada como uma profetisa que já teria sido anunciada por outros profetas. A resposta veio no mesmo campo da religiosidade, o que começou a traçar o destino da pastora guerreira. Um tratado em latim, redigido por um acadêmico parisiense, sem dúvida especialista em direito canônico, que foi escrito nas últimas semanas de 1429, nos dá o testemunho disso. O objetivo foi responder à obra de Jean Gerson Sobre uma donzela (De quadam puella, 14 de maio de 1429), onde são enumeradas as razões para crer nos propósitos santos de Joana.

No tratado anônimo, as críticas endereçadas a Joana são as seguintes: vestia-se como homem, tinha atitudes belicistas, falsas profecias, idolatria a seu favor e recurso a sortilégios. A cereja do bolo foi apontar como falta de respeito às festas religiosas a tentativa frustrada de Joana de entrar em Paris, dominada por borguinhões e ingleses, em 8 de setembro de 1429, festa da Natividade da Virgem. Tantos motivos levaram esse homem da Igreja a pedir a intervenção da universidade e do bispo de Paris – e do Tribunal da Inquisição também, habilitado a se pronunciar em todos os casos de heresia.

EM BUSCA DE CONFISSÕES Não surpreende que a universidade, cuja autoridade em matéria de teologia permanecia incontestada, e a Inquisição, agindo com ela, tenham pedido o julgamento de Joana, logo após sua prisão pelos borguinhões em Compiègne, em 23 de maio de 1430. É inútil conjecturar que esses dois órgãos tenham sido forçados pelo duque de Bedford, regente inglês na França, a tomar essa posição. A solicitação de investigação foi iniciativa dessas instituições.

Após meses de subterfúgios e negociações, a Donzela foi entregue, enfim, ao rei da França e da Inglaterra. Ela passou a ser sua prisioneira de guerra. Não seria possível julgá-la, condená-la à morte como rebelde, passível de crime de lesa-majestade?

Claro que sim. Mas o impacto de um processo semelhante seria, sem dúvida, negativo aos olhos de uma opinião pública sempre hesitante entre os borguinhões e Carlos VII. Decidiu-se então submeter o pedido das autoridades eclesiásticas para que fosse feito um processo “em matéria de fé”. Por sorte, o lugar preciso onde Joana foi presa se situava na diocese de Beauvais, cujo bispo, Pierre Cauchon, era também um dos pilares da dupla monarquia. Esse prelado, dublê de político, seria encarregado desse processo da Igreja, que ocorreria, por mais precaução, no castelo real de Rouen, que era ocupado muitas vezes pelo jovem rei inglês Henrique VI.

Pierre Cauchon não era um especialista nesse tipo de processo. Ademais, ele sabia quanto o assunto era polêmico. O bispo tomaria muitas precauções para cumprir a missão que lhe fora designada (desqualificar a acusada, neutralizá-la e mesmo eliminá-la) e fazer do processo uma obra comum dos bispos, abades mitrados, teólogos e canonistas, guarnecidos de títulos e diplomas. Era necessário que a condenação fosse, de certa forma, inatacável no campo do direito, já que, por certo, as acusações de falta de isenção se levantariam.

Ao lado de Cauchon estavam um inquisidor (Jean Le Maître), um promotor eclesiástico (Jean d’Estivet, chamado o Beneditino) e três escrivães públicos. Certamente, Joana, sozinha, contra esse poderoso tribunal, estava longe de ter chances reais de absolvição nesse processo. A isso se somavam o rigoroso encarceramento, a falta de um advogado de defesa, testemunhas de acusação não identifi cadas, nenhuma investigação de moralidade, e, sobretudo, privação de comunhão, o que para ela representava um intenso sofrimento espiritual. Mas essa era a prática da Inquisição, que se baseava na presunção de culpabilidade. Estar sob veementes acusações de ser herege (como era o seu caso) já era ser considerado culpado por heresia. Uma vez o tribunal instalado no castelo do rei, o processo começou (21 de fevereiro de 1431).

A reviravolta aconteceu quando Cauchon e seus assessores compreenderam que Joana se recusaria resolutamente a submeter as suas vozes e as suas revelações à apreciação da hierarquia da Igreja, sobretudo às pessoas hostis e parciais que estavam diante dela. À sua maneira, ela os declarava incompetentes. Parecia aceitar que seu caso fosse levado ao papa, em Roma, ou até mesmo ao concílio geral que deveria se reunir, em breve, em Basileia. Reivindicada de maneira explícita, essa insubmissão a fez, consequentemente, ser expulsa da Igreja. Ela não passava de um membro podre do corpo místico de Cristo; para a salvação do povo cristão, era necessário arrancá-lo. A sua personalidade polêmica, obstinada, ajudou aqueles inquisidores a transformá-la em herege.

Essa era a situação em 24 de maio de 1431, dia em que, em praça pública, perto da abadia de Saint-Ouen, extenuada, ela resolveu, enfim, após o desenrolar de uma cena patética, negar as suas vozes e se submeter à Igreja. Em seguida a essa aparente abjuração, ela escapou in extremis da fogueira e foi reconduzida à sua prisão para fazer penitência com pão e água.

VIGIADA POR SOLDADOS INGLESES O caso, na esfera civil, poderia ter terminado por aí. Mas, talvez, decepcionada por ainda se encontrar presa (a possibilidade de uma prisão sob o comando da Igreja, menos severa, onde ela seria vigiada por mulheres em vez de por soldados ingleses que nutriam ódio por ela, a animara a abjurar), ela afirmou que seguia ouvindo vozes e, como sinal da sua mudança, tornou a vestir roupas de homem, misteriosamente deixadas à sua disposição pelos carcereiros ingleses.

Esse acontecimento gerou um segundo processo, mais sumário: cometendo seu erro mais uma vez, ela foi classificada como relapsa. A partir daí, foi entregue ao braço secular, isto é, ao poder real, que a condenou à fogueira na praça Vieux-Marché, no dia 30 de maio de 1431. O poderoso cardeal Henri Beaufort, bispo de Winchester, tio-avô do rei Henrique, assistiu ao seu fim. Nos bastidores, ele acompanhou de muito perto o desenrolar do processo. Certamente, a dupla monarquia jamais considerou cabível a declaração de inocência da prisioneira, seguida por eventual liberação. Ela causara muitos danos aos ingleses, e o seu potencial de liderança subsistia.

Podia-se, por outro lado, questionar a posição de Cauchon: ele era apenas um executor desprovido de autonomia ou, como homem da Igreja, acreditava ser possível que a culpada fosse condenada a uma simples pena de prisão, com a condição de que reconhecesse ter deliberadamente enganado o povo, por ter sido enganada pelo diabo?

De início, o prelado não suspeitou da importância que ela atribuiu às vozes, ou seja, ele ignorava a natureza, senão a sua existência, e não entendia, portanto, a tranquila determinação de defender seu rei e assumir a sua missão. Ela podia ter negado imediatamente. A resistência surpreendeu. Após a abjuração, Cauchon se perguntou se ela continuaria a se arrepender, se esse ato não fora causado simplesmente pelo medo da fogueira. Com o benefício da dúvida, pode-se conjecturar que Cauchon chegou a ficar satisfeito com a abjuração de 24 de maio.

UM PERIGO PARA A FÉ E O PODER A questão para a dupla monarquia não era apenas condená-la à morte. Era também necessário convencer a opinião pública, na França e fora da França, da legitimidade dessa condenação. Cartas foram redigidas, algumas em latim, outras em francês, especialmente para o rei do Sacro Império Romano-Germânico, Sigismundo de Luxemburgo, o duque da Borgonha, o papa e os cardeais. O que essas cartas diziam?

Aquela mulher, devido à grande popularidade, representava um perigo para a fé, os poderes e a sociedade; ela era cruel e presunçosa, consentindo que seus seguidores a idolatrassem, por orgulho; estimava-se acima das autoridades eclesiásticas, mesmo as mais altas, dirigindo-se diretamente a Deus, de quem se julgava enviada.

Em um momento, diziam as missivas, arrependeu-se de seus erros, e a Igreja, na sua misericórdia, perdoou-a. Infelizmente, essa abjuração era apenas um logro, do qual ela voltou atrás. Então, a Igreja pronunciou sua sentença definitiva. É verdade que, antes de morrer, na última reviravolta do processo, ela confessou que as vozes a enganaram e se entregou à Igreja, a única capaz de julgar a natureza dessas vozes.

Nada mostra que essa propaganda tenha atingido o seu objetivo. O que pensava Carlos VII, que permaneceu sem reação durante todo o processo? Talvez, a seus olhos, Joana não pudesse mais ser controlada e se tornasse mais nociva do que útil, no caso de uma eventual aproximação com a Borgonha; talvez, seus conselheiros eclesiásticos tenham-no persuadido de que os fracassos sucessivos que ela sofreu desde o assalto frustrado em Paris, que ela, aliás, tinha previsto, mostravam que Deus não estava mais a seu lado.

Conhece-se o desenrolar do processo graças à redação, em latim, feita algumas semanas ou meses após sua conclusão, dos atos (um original mais cinco cópias autênticas, das quais três chegaram até nós). A autoria dessa redação é de Thomas de Courcelles, um jovem universitário com um futuro promissor, ajudado pelo consciencioso Guillaume Manchon, um dos três escrivães. Com esse documento em vários exemplares (um caso único), a dupla monarquia entendia dispor de um bom dossiê, em caso de contestação da parte de Carlos VII junto ao papa ou ao concílio de Basileia.