segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O Caso Richard Wagner


Odin e Thor ante o rei dos anões Hreidmar.

          O que significa, pergunta-se Wagner, que uma arte, como a música, tenha surgido com esse poder incomparável na vida do homem moderno? Não há necessidade tampouco de desprezar essa vida moderna ao ver que nela subsiste uma problema; pelo contrário, quando avaliarmos as forças poderosas que governam essa vida e quando evocarmos a imagem do indivíduo violentamente ávido de se elevar e que luta para adquirir a liberdade consciente e a independência do pensamento, é particularmente então que a aparição da música neste mundo parece um enigma. Como não dizer que em semelhante época a música não deveria ter surgido? Mas como então explicar sua existência? É um acaso? Certamente o aparecimento de um grande artista poderia ser furto do acaso, mas uma sequência de artistas como a história da música moderna apresenta, fenômeno que só se repetiu analogamente uma vez, na época dos gregos, induz a pensar que aqui não é o caso que reina, mas uma necessidade. Essa necessidade, aí está justamente o problema ao qual Wagner dá uma pergunta.

          Foi o primeiro que descobriu um mal difundido em todos os povos, em toda a extensão dos países civilizados; em toda parte a língua está afetada por uma doença e essa horrível doença pesa sobre toda a evolução da humanidade. A fim de captar o que mais se opõe ao sentimento, ou seja, o pensamento, a língua teve de galgar os degraus mais elevados que possam ser acessíveis e se afastar sempre mais da poderosa emoção que na origem era capaz de expressar sem esforço; esgotou-se nesse esforço desmedido, no curso do breve período da civilização moderna. Isso de tal forma que não pode mais preencher o papel pelo qual foi criada e que consiste em permitir aos homens sofredores se entenderem a respeito das necessidades mais elementares da vida.

      O homem em sua penúria não consegue mais se fazer compreender nem em se comunicar verdadeiramente com o outro por meio da língua; nesse estado em que tem obscuramente consciência, a língua; nesse estado em que tem obscuramente consciência, a língua se tornou um poder autônomo que aperta os homens com seus braços de fantasma e os impele para onde não querem ir. A partir do momento em que procuram se entender e se unir para uma obra comum, a loucura dos conceitos gerais ou mesmo das puras sonoridades verbais se apodera deles e, nessa impossibilidade em que estão para se exprimir, as criações coletivas de seu espírito levam por sua vez o sinal do desentendimento íntimo, na medida em que não correspondem mais a necessidades reais, mas somente ao nada dessas palavras e desses conceitos tirânicos; é assim que a humanidade acrescenta a seus outros males a submissão à convenção, ou seja, a um acordo entre as palavras e os atos que não correpondem a um acordo de sentimento. Do mesmo modo que as artes em seu declínio chegam a um ponto em que a proliferação mórbida dos meios e das formas adquira uma prepoderância tirânica sobre a alma dos jovens artistas e os reduz à servidão, assim também, no declínio das línguas, nos tornamos escravos das palavras; sob essa coação, ninguém ousa mais se mostrar tal como é nem se exprimir ingenuamente e muito poucos chegam a salvaguardar sua personalidade na luta contra uma cultura que julga afirmar seu sucesso não se colocando serviço de necessidades claramente sentidas, mas envolvendo o indivíduo na rede das “idéias claras e distintas” e ensinando-lhe a pensar corretamente; como se não houvesse um interesse qualquer para tornar o homem apto a pensar e a raciocinar corretamente, se não conseguiu primeiramente lhe ensinar a sentir corretamente!

        Quando, em seguida, numa humanidade assim alterada, chega tinindo a música de nossos mestre alemães, o que é que percebemos? Precisamente esse sentimento justo, inimigo de toda convenção, de toda barreira artificial, de toda desinteligência entre os homens. Essa música é retorno à natureza, pois, é na alma dos homens amantes que surgiu a necessidade imperiosa desse retorno e o que vibra em sua arte é a natureza mudada em amor. Pode-se admitir que essa e´uma das respostas que Wagner dá ao problema da significação da música em nosso tempo; mas tem uma segunda. A relação entre a música e a vida não é somente a de uma linguagem com outra espécie de linguagem, é também a relação do mundo sonoro inteiro com o mundo visual inteiro. Mas enquanto fenômeno visual e comparada com as manifestações anteriores da vida, a existência do homem moderno é de uma pobreza, de uma miséria extrema apesar de sua inenarrável confusão de cores que só pode satisfazer o olhar mais superficial.


Wilhelm Richard Wagner (1813-1883).

          Que nos demos ao trabalho de olhar um pouco mais de perto e analisar a impressão produzida por esse jogo de cores violentamente agitado. Não é semelhante ao cintilar e ao reflexo de inumeráveis pequenas pedras e fragmentos de pedras tomadas das civilizações passadas? Que vemos nisso além de luxo inconveniente, animação de comando, aparência afetada? Um traje feito de ouropéis multicoloridos para vestir aqueles que estão nus e tremendo? Uma dança falsamente alegre imposta aos que sofrem? Gestos de orgulhosa fatuidade exigidos de feridos graves?