quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O MUNDO DA CAÇA, DA PESCA E DA COLETA, PARTE II.

2. Caçadores, pescadores e coletores das áreas abertas: a tradição Umbu.

Material ósseo e dente das Tradições Umbu ou Vieira: pontas (a, b, d, f - j), uso desconhecido (c, k) e conta-de-colar em dente de tubarão (e).

Pedro Ignácio Schmitz*

A pesquisa sobre os povoadores mais antigos foi realizada por Eurico Th. Miller (1976), no sudoeste do Rio Grande do Sul, na margem do rio Uruguai e seus afluentes, onde encontrou acampamentos datados desde 10.700 a 6.600 a.C. Os mais antigos receberam a denominação arqueológica de fase Ibicuí, os demais, de fase Uruguai. Schmitz e equipe escavaram, em Ivoti, um pequeno abrigo rochoso, cujas camadas mais antigas são contemporâneas desses achados.

No lugar denominado Batinga, no município de Maratá, Pedro Augusto Mentz Ribeiro (com. pes. 1989), também num abrigo rochoso, encontrou material muito rico da mesma idade. Para este período só temos, por enquanto, estas informações. A fase Ibicuí, representada pelos dois acampamentos mais antigos, sobre afluentes do rio Uruguai, no sudoeste do estado, vem acompanhada de animais pleistocênicos extintos; entre os instrumentos abandonados, lascados por percussão, encontram-se raspadores e talhadores, mas ainda nenhuma ponta-de-projétil bem definida. Ela corresponde ao período seco do final da glaciação, em que o rio tem pouca água e corre num leito reduzido; os materiais saem das barrancas por baixo do nível atual das águas e estão
acessíveis só em período de seca extraordinária. A fase Uruguai, para a qual se conhecem mais de duas dezenas de acampamentos sobre o rio Uruguai, certamente é a continuação da fase Ibicuí, separada pelo arqueólogo porque algum instrumento é diferente.

Ainda pertence ao período seco posterior à glaciação, mas o rio já tem um pouco mais de água. Os sítios encontram-se geralmente na confluência de arroios e sangas com o Uruguai e na frente de corredeiras, onde os alimentos e os seixos para produzir instrumentos costumam ser abundantes. Os artefatos mais característicos são pontas-de-projétil lascadas em pedra, ao lado de raspadores, facas e percutores. O carvão que serviu para datar numerosos sítios provém das fogueiras que eram acesas no meio do acampamento e que se encontram rodeadas de restos de lascamento e instrumentos abandonados. Não há restos de choupanas: talvez ainda não soubessem construir. Os acampamentos correspondem a grupos reduzidos de pessoas e seriam pouco duradouros. Os grandes animais do período frio deveriam estar em extinção e a caça deveria concentrar-se em animais de tamanho médio e pequeno, semelhantes aos de hoje.

A escavação realizada por Schmitz e equipe, no abrigo de Ivoti, não chegou a produzir resultados diferentes, mas o abrigo de Batinga nos informa que, ao lado de caça de médio e pequeno porte, o grupo recolhia numerosos caramujos terrestres que constituíam parte de sua alimentação. Estes abrigos são acampamentos temporários típicos de pequenos bandos que caçam na área.

Os poucos sítios estudados até agora deixam bem claro que, entre 10.000 e 6.000 anos, a população é extremamente rarefeita e vive em pequenos grupos familiares que vagam pelo território, acampando à beira de córregos ou em abrigos rochosos da borda do planalto. Ainda não se encontrou nenhum de seus esqueletos, mas só os restos conservados de seus instrumentos e, às vezes, de suas precárias refeições.

Neste tampo outros pequenos bandos, com instrumental semelhante, vagavam pelas áreas de vegetação aberta do sul do Brasil, do Uruguai e da Argentina. Mas nos cerrados do Brasil Central e no Nordeste, bandos um pouco mais densos e com instrumentos também diferentes já deixavam marcas muito mais precisas de sua passagem, em abrigos, grutas e acampamentos a céu aberto, onde são abundantes os restos de comida e esqueletos e as pinturas e gravuras cobrem paredões inteiros.

Na medida em que a umidade e a vegetação arbórea aumentam, encontramos as populações da tradição Umbu mais concentradas nos abrigos rochosos e ao longo dos rios da borda do planalto no Nordeste e Centro do Estado, na proximidade dos campos, dos pinheirais e talvez dentro de uma franja de mata subtropical que deveria estar se expandindo rapidamente. Os sítios são geralmente maiores e mostram maior tempo de ocupação. Talvez houvesse, ainda, pequenos grupos, vagando em campos abertos durante certas estações, mas os restos destes acampamentos são difíceis de achar. O instrumento em pedra torna-se mais variado, apresentando ainda furadores, quebradores de frutos, talhadores, lâminas polidas de machado e bolas de boleadeira. A matéria-prima para a produção desses instrumentos provém de seixos do rio, blocos ou afloramentos rochosos e é trabalhada, de acordo com sua natureza, por lascamento, picoteamento ou polimento. Calcedônia, arenito, quartzo e quartzito são trabalhados por percussão; basalto, diorito e outras rochas semelhantes geralmente por picoteamento ou polimento.

Em osso, sub-produto da caça, preparam furadores, espátulas, anzóis, agulhas e pingentes de dentes perfurados; carapaças de moluscos servem para fazer contas de colar. Os restos de alimentos, encontrados principalmente nos abrigos rochosos, nos dizem que faziam uma caça generalizada, onde aparecem a anta, o veado, o porco-do-mato, a cutia, o coati, a paca, o bugio, a jaguatirica, o tatu, o ratão do banhado e outros ratos, a preá, cágados e lagartos. Geralmente encontram-se também ossos de peixe. Às vezes cascas de ovo de ema. Em alguns abrigos são abundantes as conchas de caramujos terrestres ou de água doce. As frutas estão pouco representadas, o que não quer dizer que não seriam muito usadas. Os restos mostram que a alimentação era conseguida com a apropriação de produtos naturalmente disponíveis, sem acréscimo notável resultante da engenhosidade humana. Esta falta de controle da produção obrigava os grupos a manterem-se pequenos, móveis e dispersos pelo território.

Alguns esqueletos foram recuperados de sepultamentos em abrigos rochosos. Ainda não foram estudados do ponto de vista de sua biologia. Os falecidos eram enterrados no chão mesmo dos acampamentos. O ritual de sepultamento era simples: uma vez aberta uma cova, na mesma eram colocadas lajes de arenito à guise de assoalho, com uma extremidade mais elevada à maneira de travesseiro. Sobre o assoalho e o travesseiro era posta uma camada fina de carvões que recebia o corpo envolto em folhas de árvores e que era coberto com terra ou lajes. O corpo era depositado estendido de costas ou todo dobrado; só raramente os adultos eram acompanhados de algumas contas de colar; as crianças com mais freqüência (Miller, 1969). Nas paredes de alguns abrigos existem gravuras, simples rabiscos irregulares, geralmente preenchidos com pigmentos escuros, para destacá-los do fundo rochoso.

Quando o clima novamente se torna mais frio e a chuva menos intensa, um nicho muito rico, que se vai criando ao longo das lagoas litorâneas e nos grandes banhados das cabeceiras dos rios do Centro e Sul do Estado, vai ser intensamente explorado. Ali a caça, o peixe e as frutas são mais abundantes que em qualquer outra parte ocupada pela tradição Umbu, além de ser abundante o material para construir choupanas, que já neste tempo deveriam levantar para abrigo das chuvas, dos animais e do frio. Os sítios arqueológicos típicos são aterros, ou cerritos, na borda e dentro das áreas alagadiças, multiplicados às centenas desde aproximadamente 500 a.C. Logo essa população vai adotar a cerâmica da tradição Vieira e talvez alguns cultivos. O
modo de vida dessas populações é descrito no capítulo que trata da tradição Vieira.

Sítios da tradição Umbu só excepcionalmente são encontrados na mata, que é território da tradição Humaitá, ou no litoral, onde se encontram os sambaquis.
Pesquisas sobre a tradição Umbu foram realizadas principalmente por E.Th. Miller, P.A. Mentz Ribeiro e P.I. Schmitz. Arno A. Kern (1981) e P.I. Schmitz (1984, 1985 e 1987) reuniram essas informações em sínteses mais ou menos desenvolvidas, onde pode ser encontrada a bibliografia e as datas de carbono radioativo.

Você quer saber mais?


Schmitz, Pedro Ignácio, Arqueologia do Rio Grande do Sul, Instituto Anchietano de Pesquisas, 2006.

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